“A gente não quer críticas, não quer conselho, a gente só quer alguém que nos escute.”

02/05/2024

Projeto oferece atendimento psicológico para mães de usuários da Apae Aracaju. A ação tem como foco a saúde mental e o acolhimento emocional das famílias dos usuários e tem a estimativa de atender mais de 100 mães. 

Irllen Sousa

 

Após o nascimento de um filho, toda a rotina de uma mãe muda. Para as mães de crianças com deficiência essa mudança é ainda mais significativa, pois além de toda a adaptação e cuidados que precisará ter com aquela nova vida que acaba de chegar ao mundo, terá que aprender e conhecer sobre as limitações do filho, lidar com uma intensa rotina de tratamento, além do julgamento e preconceito da sociedade. 

Muitas mães de crianças atípicas compartilham do mesmo relato: “Eu larguei mão de muita coisa pelo meu filho”. Todas as mulheres ouvidas para essa matéria afirmam ter aberto mão de algo importante na sua vida (trabalho, estudo, lazer e até seu próprio autocuidado) para se dedicar inteiramente ao tratamento do seu filho. Um gesto de amor que é compreensível e inspirador, mas também doloroso e preocupante. 

Pensando na saúde mental dessas mães e em um contexto geral, em que o bem estar da família influencia diretamente no tratamento da criança, a Apae Aracaju passou a ofertar atendimento psicológico para as mães dos usuários. O projeto “Cuidando de quem Cuida” é mediado pela psicóloga Nívia Bianca, e tem a estimativa de acolher cerca de 100 mães na instituição. 

Esse olhar de acolhimento e preocupação com as mães começou a ser exercitado desde 2020. Segundo a própria Nívia, que também já foi psicóloga efetiva da instituição, ela e mais uma psicóloga já chegaram a fazer atendimentos de escuta ativa como uma forma de acompanhar e aconselhar as mães. 

“Com a pandemia, em 2020, o Cuidando de quem Cuida virou um projeto e passou a ser desenvolvido pela Federação Estadual, dando suporte aos colaboradores da rede apaeana em Sergipe e aos familiares dos pacientes. Foi a partir de então que passamos a promover essa atenção e escuta qualificada. A pedido do presidente da Apae Aracaju, Carlos Mariz, esse projeto foi implementado e começou a ser desenvolvido especificamente para as mães e familiares da unidade.”, declara Nívia Bianca. 

A terapia é feita em grupo. Durante 1h as mães se reúnem com a psicóloga e podem discutir em um ambiente seguro todas as suas angústias, compartilhar experiências e até trazer dicas umas para as outras. Enquanto os filhos estão em atendimento, durante todas as terças-feiras elas têm a chance de dedicar um tempo para cuidar de si mesmas e aprender a como lidar melhor com as demandas externas. 

“Nós que fomos escolhidas para tomar conta dessas crianças nem sempre somos resistentes o tempo todo. Existem momentos em que a gente desaba e falta acolhimento, quem nos escute e quem nos apoie. Eu passei por momentos aqui, quando ele começou as terapias, que eu estava exausta e pensava ‘eu não vou conseguir’. Depois do programa que começou a acolher as mães, nós começamos a ver que não era só a gente que estava passando por esse sofrimento. Às vezes passamos a deixar o nosso problema um pouco em segundo plano para dar atenção a uma outra (mãe) que está ali e consegue perceber que o que ela está passando chega a ser um pouco mais dolorido e um pouco mais difícil que o nosso. Para mim foi maravilhoso e foi o melhor projeto que poderia ter. Fez a gente enxergar a importância do desabafo, de ter uma pessoa para ouvir, pois às vezes a gente não quer críticas, não quer conselho, a gente só quer alguém que nos escute.” relata Idemara Barbosa, mãe de Enzo, e participante do grupo de terapia. 



 

Uma vivência solitária

 

Além de todo processo vivido, muitas mães passam pelos percalços sozinhas. Somente nos quatro primeiros meses deste ano, 55.183 crianças foram registradas no Brasil sem o nome do pai na certidão de nascimento. Os dados são do Portal da Transparência do Registro Civil. Esse abandono se torna ainda mais agravante quando se trata de crianças com deficiência, pois os dados do Instituto Mano Down chegam a apontar que mais de 70% dos pais abandonam os filhos com deficiência intelectual antes dos seus primeiros 5 anos de vida. 

O grupo de mães assistidas pelo projeto "Cuidando de quem Cuida” é um reflexo da sociedade. Nele, um dos principais pontos discutidos pelas mães é a solidão e a falta de uma rede de apoio. A rotina desgastante e a sobrecarga afeta o psicológico dessas mulheres que buscam na terapia em grupo um conforto, uma rede de apoio e amigas que compartilhem suas experiências e acertos. 

“Eu sou uma mãe sozinha para tentar resolver tudo, absorver tudo. Aqui eu encontrei apoio psicológico e principalmente direcionamento para não me sentir sozinha e saber para onde caminhar. Enquanto Noah está em atendimento eu estou na minha terapia e temos esse tempo de paz para nós dois. É um alívio chegar em um ambiente e soltar tudo que você tem que reprimir porque a sociedade diz que é errado. No grupo a gente consegue ouvir as histórias de vida umas das outras, histórias parecidas e isso traz um conforto de saber que não estamos só. Uma segura na mão da outra e seguimos em frente.”, relata Amélia Maximo, mãe do Noah e participante do projeto. 

Amélia diz também que o grupo passou a ser a nova rede de apoio dela. A reunião com as mães saiu da roda de conversa semanal e passou a ter uma conexão física e foi levada até fora da instituição. “O grupo funcionou para mim para tudo. Para conversar, para trocar ideias, para se apoiar, dar conselhos, dicas e por aí vai. Eu agradeci muito a Deus por isso, pois eu estava me virando às cegas e muitas vezes eu nadava, nadava e morria na praia. Agora eu tenho com quem ter uma troca e me sinto mais tranquila”., conclui a mãe.


 

Ação que transforma

 

Com o projeto Cuidando de quem Cuida as mães passam a ter mais confiança e suporte emocional para lidar com as situações adversas que podem acontecer na vida da criança. Passam também a reconhecer a importância de si mesmas e do seu bem estar para poder dar a atenção de qualidade que o filho precisa. Passam a entender que se priorizar não é ser negligente. 

“Na terapia a gente conversa muito sobre esse cuidado que precisamos ter com nós mesmas. A necessidade que temos de parar, respirar e desacelerar. Isso nos transforma e nos mostra um mundo além da janela. Ficamos presas a essa ideia de que precisamos sempre nos dedicar e acabamos esquecendo de cuidar da gente. Assim como todas as outras mães (de pessoas sem deficiência) nós temos que entender e distribuir o nosso tempo. Hoje, depois de algumas sessões de terapia, já ouvimos relatos de mães que estão se dando mais esse tempo, indo à praia, relaxar, ao cinema, descansar a mente.” diz Idemara. 

“Quando a gente aprende aqui na roda de terapia o trabalho em casa flui melhor. Eu vou trabalhar com meu filho o que eu aprendi aqui e assim posso evitar crises, dar uma qualidade de vida melhor para ele e para mim. Quanto mais eu ajudar Noah melhor vai ser para ele e para mim como mãe. Vou ficando mais forte e aprendendo a lidar melhor com meus sentimentos e não absorver as besteiras que a gente escuta.” relata também Amélia sobre os aprendizados que teve com o projeto. 

Essa atenção com as mães fortalece o laço familiar e ajuda na evolução das terapias. Com mais tranquilidade, segurança e apoio, as mães passam a acompanhar essas crianças e prestar uma assistência melhor em casa. “Se não atendermos essa mãe, a evolução da criança pode não ser alcançada da forma esperada. Com o tratamento a mãe passa a entender melhor o processo de funcionamento do TEA e seus potenciais. Buscamos fortalecer essa mulher que precisa olhar para ela para poder cuidar do filho.” conclui a psicóloga Nivia Bianca.